Durante a Copa das Confederações, 89 pessoas exerceram ilegalmente as técnicas radiológicas no setor de inspeção, salvaguardas e segurança do Estádio Nacional de Brasília, um crime praticado pela Federação Internacional de Futebol (Fifa) e seus parceiros com o aval dos governos local e federal contra a segurança e a vida das pessoas que assistiram à vitória de 3 a 0 do Brasil sobre o Japão no dia 15 de junho passado.
Sem saber, milhares de espectadores foram expostos aos efeitos das radiações ionizantes sem o menor controle de doses absorvidas ou adoção dos requisitos mínimos de segurança previstos na legislação específica. Não é recomendado, por exemplo, que gestantes passem por inspeção com RX. Mas, no mundo do futebol, quem se preocupa com os grupos de risco?
A constatação das irregularidades foi feita pelo Conselho Regional de Técnicos em Radiologia da 1ª Região (CRTR/DF), que realizou fiscalização no dia anterior ao início do torneio e autuou a Fifa, A União e as empresas privadas Griffo e A&C Eventos e Promoções – terceirizadas, para não dizer, quarteirizadas - por acobertar e promover o exercício ilegal das técnicas radiológicas, num claro atentado contra o conjunto normativo que regulamenta a atividade no Brasil.
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De acordo com o presidente do CRTR/DF, Adriano Alberto Xavier Levay, o processo administrativo foi instaurado e distribuído às autoridades competentes no DF, ao governo federal e à própria Fifa, de quem se requer providências. “Encontramos escâneres de bagagens, de pessoas, de carros, de todo tipo. Não havia uma pessoa qualificada sequer na operação desses equipamentos. A própria instalação deles denotava a imperícia e total burla dos requisitos de segurança. Relatamos todas essas ocorrências e informamos às autoridades. Se quiserem, os responsáveis podem corrigir tudo a tempo da Copa do Mundo de 2014. Mas, como vivemos em um estado de exceção, não confio que isso ocorra, a não ser por força judicial”, lamenta.
De acordo com o CRTR/DF, a Diretoria de Vigilância Sanitária (Divisa/GDF) não sabia do uso dos equipamentos no estádio. Portanto, não houve a liberação por qualquer órgão do estado. Tudo foi feito à revelia, sem consulta técnica.
Segundo a fiscal Eliana Martins, a situação era crítica. Não havia dosimetria e muito menos forma de conferir se os equipamentos estavam calibrados. “Das 89 pessoas que encontrei operando escâneres de inspeção que emitem radiação ionizante, nenhuma possuía formação ou habilitação profissional e estavam trabalhando sem qualquer tipo de supervisão. Conversando com elas, percebi que eram pessoas comuns, que foram captadas às pressas, sem nenhum critério de seleção. A maioria tinha medo até de falar comigo”, lembra.
O país, que naquele dia venceu e tem chances reais de levar a melhor na próxima copa, continua tomando de goleada no campo da cidadania. “O estado é o maior descumpridor da nossa legislação, seja na área da saúde ou qualquer outro setor em que se aplique a tecnologia, que é altamente insalubre. Sempre na busca do menor custo, a Fifa burla as leis para lucrar algo estimado em R$ 4 bilhões, sem socializar uma parte sequer desse montante”, opina a presidenta do CONTER Valdelice Teodoro.
A legislação que disciplina o exercício profissional das técnicas radiológicas são as Leis n.º 1.234/50 e 7.394/85. Esses marcos regulatórios deixam claro qual é a formação mínima necessária para operar equipamentos emissores de radiação ionizante. Já os requisitos de proteção radiológica são definidos pela Portaria ANVISA n.º 453/98 e pela Convenção OIT 115, ratificada pelo Brasil ainda na década de 1960.
Mas, qual é o problema?
A radiação ionizante não tem cheiro, não tem cor ou gosto, mas tem a capacidade de entrar no corpo e, inclusive, provocar alterações genéticas. Portanto, é necessário que haja um controle rigoroso das doses absorvidas, o uso dos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), que a estrutura seja construída com material que limite o alcance da ionização e que o profissional que opera o equipamento tenha formação adequada para garantir a eficiência do sistema. Sem isso, além de inseguro, o processo se torna ineficiente e o investimento, ineficaz.
Os efeitos das radiações ionizantes são classificados em dois tipos: os estocásticos e os determinísticos. O primeiro ocorre em função de pequenas exposições por longos intervalos de tempo, não possuindo um limiar de dose e se manifesta, principalmente, por alterações genéticas malignas (câncer). Os efeitos determinísticos ocorrem em função de altas doses de radiação em curtos intervalos de tempo. Um indivíduo que seja exposto a uma alta dose no cristalino, por exemplo, terá catarata; um indivíduo exposto na região das gônadas poderá ficar estéril temporariamente ou permanentemente, em função da dose que recebeu. Uma irradiação de corpo inteiro ou uma contaminação, como ocorreu em Goiânia com o Césio 137, pode gerar efeitos imediatos como náuseas, vômito, diarréia, dor de cabeça e até mesmo aborto espontâneo, colapso do sistema nervoso e a morte do indivíduo.
“A radiossensibilidade celular está diretamente relacionada com a taxa de reprodução do grupo celular. Quanto maior a taxa de reprodução, maior a radiossensibilidade. Então as células da pele, tireóide, gônadas e cristalino estão mais suscetíveis aos efeitos biológicos das radiações ionizantes. Portanto, devem estar protegidas no momento da exposição. Contudo, atualmente, os operadores desses equipamentos na área de segurança trabalham sem nenhum cuidado ou acompanhamento à saúde”, esclarece Valdelice Teodoro. É recomendado que os operadores de escâneres façam exame de sangue com contagem de plaquetas a cada seis meses e, ao sinal de queda, o profissional seja afastado preventivamente até o reestabelecimento das taxas.
Há riscos para qualquer indivíduo exposto ocupacionalmente, mesmo que o equipamento produza baixas taxas de dose, em função das características de ocorrência dos efeitos estocásticos. Os riscos gerados por esse tipo de equipamento mudam em função das pré-disposições genéticas de cada indivíduo, podendo se agravar em crianças.
Limites
Os limites pessoais determinados pela legislação são de 50 milisieverts (mSv) de dose efetiva por ano, devendo possuir uma média de 20 mSv em 5 anos, segundo a Portaria ANVISA n.º 453/98, além de valores intermediários durante os meses, que traduzem níveis sujeitos à investigação e/ou intervenção laboratorial (exames citogenéticos) e notificação às autoridades reguladoras. Para outras regiões, o valor muda, como também muda a grandeza dosimétrica avaliada. Nas extremidades, o nível de investigação é de 150 mSv por ano ou 20 mSv de Dose Equivalente em qualquer mês e, no cristalino, 6 mSv por ano ou 1 mSv em qualquer mês, segundo a Posição Regulatória 3.01/004:2011. Para monitorar essas doses, o profissional que lida diretamente com o equipamento deve usar um dispositivo chamado dosímetro.
Independente da dose, há riscos
A tese de que a radiação ionizante de baixa intensidade não é nociva à saúde humana já foi derrubada por diversos artigos científicos. É consenso no meio acadêmico que a exposição à radiação sem um rigoroso controle das doses absorvidas provoca alterações do material genético das células e pode causar problemas de saúde, como câncer, anemia, pneumonia, falência do sistema imunológico, problemas na pele, entre outras doenças não menos graves, que podem induzir ao infarto ou derrame.
Existem grupos de risco. É de extrema importância que uma gestante seja submetida a exames que utilizam radiação ionizante apenas quando for comprovadamente necessário. Principalmente, se estiver no primeiro trimestre da gravidez, pois o feto tem maior nível de radiossensibilidade neste período. Uma vez comprovada a extrema necessidade do exame, recomenda-se que o profissional utilize as técnicas radiográficas (kV e mAs) mais otimizadas possíveis, caso essa via (radiologia), para o diagnóstico, seja fundamental e única. A lactante, pelos mesmos motivos que não pode tingir o cabelo, deve evitar exames de medicina nuclear, pois os radiofármacos administrados no paciente podem ser transmitidos como conteúdo radiativo por meio da amamentação. Dependendo da meia-vida efetiva do radioisótopo e do procedimento realizado, pode perdurar uma contagem significativa, gerando risco de efeitos biológicos para a criança.
Aeroportos
De acordo com o mestre em Radioproteção e Dosimetria pelo IRD/Cnen, professor Giovane Teixeira, ler radiografias e assimilar a radioproteção exigem treinamento em cadeiras paralelas à simples formação da imagem, como a física das radiações e a radiobiologia, o que não é possível a um agente de segurança sem formação específica. “Um profissional com uma formação em análise de imagens, que estudou sobre a física das radiações e, especificamente, os parâmetros de imagem convencional e digital seria capaz de uma interpretação mais eficiente nessas inspeções, reduzindo assim os riscos envolvidos e aumentando a efetividade do sistema”, garante.
Em resposta ao Ministério Público Federal (MPF), nos autos do Inquérito Civil n.º 1.16.000.000094/2011-62, a Infraero afirma que os scanners de inspeção são seguros e não representam risco à saúde por serem dotados de uma cavidade interna, blindada e protegida.
O CONTER refuta o argumento, pois não existe nenhum equipamento de raios X sequer que tenha a ampola geradora da radiação ionizante exposta. Todas são, de fato, internas. Todavia, não são totalmente blindadas e, muito menos, “protegidas”. O fato de a fonte emissora de radiação ficar dentro do equipamento não evita a dispersão dos raios X que são emitidos, é o que se chama de radiação secundária.
Em resumo, isso significa dizer que quando um feixe de raios X é acionado e entra em contato com a superfície a que foi direcionado, embora seja colimado, há o espalhamento de radiação ionizante no ambiente. De forma isolada, isso não representa risco, pois é considerada uma radiação de baixa intensidade. Todavia, os raios X possuem efeito acumulativo e estocástico e, em médio e longo prazo, podem resultar em efeitos biológicos.