Análise médico-legal das demandas judiciais em imaginologia
Luiz Carlos Leal Prestes JrI; Euderson Kang TourinhoII; Mary RangelIII
IMestre
em Medicina, Coordenador da Câmara Técnica de Medicina Legal do
Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro,
Perito-Legista do Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto - IML, Perito
Médico Judicial, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIDoutor, Professor
Adjunto do Departamento de Radiologia, Chefe da Seção de Diagnóstico por
Imagem do Instituto de Ginecologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), Coordenador da Câmara Técnica de Radiologia do Conselho
Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ,
Brasil
IIIDoutora em Educação, Pós-Doutorado na área de Psicologia
Social, Professora de Didática da Universidade Federal Fluminense (UFF),
Niterói, RJ, Titular da Área de Ensino-Aprendizagem da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
INTRODUÇÃO
Em
nosso país, valendo-se do chamado estado democrático de direito,
criou-se, na sociedade, um falso e nocivo entendimento de que, nas
relações de consumo, basta o consumidor exigir, que será prontamente
atendido.
A Constituição de 1988 instituiu o habeas data, que
assegura a qualquer cidadão obter informações existentes sobre a sua
pessoa, em qualquer lugar, incluindo, naturalmente, o prontuário médico.
Juntamente com o Código de Defesa do Consumidor, que estabelece o dever
de informar por parte do fornecedor de produtos ou serviços, fez
aflorar ao cidadão a necessidade de ser esclarecido sobre todos os
procedimentos médicos a que irá ser submetido.
Existe um certo
preconceito que todo resultado atípico e indesejado, no exercício da
medicina, deva ser de responsabilidade do médico(1).
De acordo
com a doutrina e a jurisprudência estabelecidas nos princípios da
responsabilidade civil médica, o profissional de saúde poderá ser
responsabilizado quando agir com culpa, no sentido amplo, não somente
pelo que fez, mas também, pelo que deixou de fazer ou pelo que informou
ou deixou de informar.
A descrição dos problemas levantados nas ações
judiciais a partir dos relatos dos próprios pacientes revela ampla
variedade de queixas que geram as situações de conflito: a letra
ininteligível do médico numa receita de medicamento, problemas ou
complicações oriundas de intervenções cirúrgicas, passando por laudos de
exames de conteúdo vago ou lacônico com diagnósticos equivocados,
ressaltando-se que, na maioria dos casos, há alegação de informações
inexistentes ou insuficientes sobre o tratamento.
Não há dados
estatísticos oficiais sobre o número de processos envolvendo erro médico
no Brasil. Entretanto, existe um consenso, no meio jurídico, de que há
um significativo aumento no número de novas ações. Estima-se hoje que
exista cerca de 10.000 processos tramitando nos tribunais contra
médicos, em sua maioria arguindo responsabilidade civil do
profissional(2).
O número de processos envolvendo ações contra
médicos enquadra-se dentro do perfil dos países em desenvolvimento. O
Brasil, mesmo sem dados estatísticos oficiais, registra um número de
processos abaixo daqueles que ocorrem em países desenvolvidos, mas acima
dos países menos desenvolvidos.
Outro fator que influencia,
sobremaneira, o aumento de tais demandas é o próprio crescimento
populacional, mercê do aprimoramento instrucional e da facilidade de
acesso às fontes de informação.
A mídia - escrita, falada e
televisada -, em inúmeras ocasiões tem prestado um desserviço social,
pois, visando ao lucro jornalístico e sensacionalista, não raro leviana,
prejulga o médico, condenando-o de forma leiga, muito antes de uma
apuração mais técnica e detalhada dos atos praticados. Com isso fere,
moral e materialmente, médicos e pacientes, contribuindo para uma
medicina defensiva e cada vez mais onerosa, longe de atender aos
direitos constitucionais à saúde da sociedade.
O judiciário, em
face do crescente número de ações, tem também o papel de desestimular as
demandas infundadas, que alguns chamam de "loteria judicial", ou seja,
uma forma descompromissada e irresponsável do paciente, desprovido de
razões, tentar auferir algum lucro ou vantagem financeira, valendo-se
dos inconvenientes que o processo acarreta ao médico, como altos custos
judiciais, desgaste emocional, desmotivação pela especialidade e muitas
vezes pela profissão, bem como sensação de impotência e injustiça.
O
crescente incentivo e apelo democrático à chamada indústria do dano
moral também acrescenta razões no incremento do processo de vitimização
da sociedade.
A criação do Código de Defesa do Consumidor foi a
grande divisora de águas, permitindo às vítimas dos chamados "erros
médicos" maior proteção por meio de mecanismos jurídicos, como a
gratuidade de justiça, a inversão do ônus da prova, e da concessão de
indenizações astronômicas por danos morais(3).
A socialização da
medicina e a constante necessidade de sobrevivência no mercado de
trabalho fizeram da medicina a profissão que mais absorve os impactos
das novas concepções sociais, tornando-se, ao mesmo tempo, uma profissão
de altíssimo risco.
O PROCESSO JUDICIAL NO CONTEXTO DO EXERCÍCIO PROFISSIONAL
Aspecto
de maior importância para o tema é a grande transformação do
relacionamento médico-paciente ao longo dos anos. A saudosa relação
quase fraternal, cultuada entre pacientes, médicos e familiares,
praticamente desapareceu, dando lugar a uma relação impessoal, fria e
essencialmente técnica.
O relacionamento distorcido, muitas
vezes, por consultas rápidas, superficiais, sem um diálogo mais
aprofundado, e sem a participação de pacientes e familiares nas decisões
terapêuticas, propicia certamente a questionamentos que podem ser
levados à justiça(4).
Temos também a considerar que hoje vivemos
no mundo contemporâneo, momentos de marcantes transformações sociais e
de valores. A influência da biotecnologia determina uma maior
expectativa de cura das doenças, mas também predispõe a inúmeros e
inevitáveis riscos.
O médico não pode ficar de fora desse contexto e das mudanças de paradigmas.
A
sociedade reage com naturalidade quando o profissional médico atinge o
sucesso da cura, com o tratamento instituído. Todavia, quando as
expectativas não se concretizam e o êxito não é alcançado, o médico é
execrado e presumidamente culpado, sujeito às mazelas dos processos
judiciais.
O enorme arsenal tecnológico que o imaginologista
dispõe, cada vez menos invasivo, facilita muito, sob o ponto de vista
técnico, a abordagem do doente, mas por outro lado, afasta ou
simplesmente prejudica a relação médico-paciente.
Um dos grandes
avanços foi, sem dúvida, a ultrassonografia, uma modalidade de imagem
realmente não invasiva, desaparecendo o risco de dano para o paciente.
No
entanto, constitui um exame de imagem essencialmente
operador-dependente e, sendo assim, requer treinamento e experiência do
operador para sua correta interpretação.
O ERRO DIAGNÓSTICO
A
falha no diagnóstico radiológico ("missed" radiographic diagnosis) é
responsável por 70% dos processos envolvendo radiologistas nos Estados
Unidos. Cabe, entretanto, diferenciar se tal falha se deu por
negligência, imperícia ou imprudência, que, na maioria das vezes, torna
árdua a tarefa para os peritos nomeados.
Alguns dos chamados
"erros diagnósticos" estão relacionados à interpretação equivocada do
profissional, seja pela falta de conhecimento, seja pela conclusão
inadequada, ou ainda pela má escolha da técnica empregada(5).
Na
experiência adquirida ao longo dos anos, na análise médico-legal em
processos de responsabilidade médica, foram também observadas falhas
oriundas da identificação ou percepção das lesões, muitas vezes
diminutas ou mal definidas.
Considerando a análise desses parâmetros,
não se pode deixar de considerar a má qualidade dos equipamentos, a
falta de manutenção, principalmente no interior dos Estados, em que os
investimentos não contemplam o avanço tecnológico.
A
obsolescência é patente na maioria das clínicas e hospitais de pequeno
porte nos interiores desse imenso país. Sempre que um aparelho novo é
lançado, o equipamento anterior é substituído e vendido por preços
"módicos" às prefeituras e nosocômios de menor porte.
Vale
ressaltar que tal prática é muito comum envolvendo mamógrafos. A não
visualização de lesões nas imagens produzidas ou sua má interpretação
podem gerar consequências graves para a paciente.
A mamografia é
hoje o principal método de rastreamento do câncer de mama, portanto, é
um exame de grande importância para a mulher e pode suscitar demandas
judiciais de grande monta, quando não interpretado corretamente.
Com
certa frequência são observadas, em processos de responsabilidade
médica, condutas envolvendo falhas no diagnóstico de imagens "suspeitas"
ou ainda a ocorrência de falso-negativos, que podem retardar o início
do tratamento.
Algumas ações são de grande importância para evitar
tais demandas, como a participação no Programa de Controle de Qualidade
da Mamografia, gerenciado pelo Colégio Brasileiro de Radiologia e
Diagnóstico por Imagem, e ainda a padronização do critério BI-RADS,
amplamente utilizado(6). A integração com o médico assistente é sempre
recomendável para uma abordagem multidisciplinar ao paciente.
Outro aspecto de suma importância, quando se analisa a questão médico-legal e pericial, é o laudo.
Documento
é a expressão escrita de um fato, portanto, define exatamente aquele
momento na interpretação da imagem. E é exatamente a análise deste
documento e sua correlação com a clínica e com a imagem que será o
objeto de atenção do perito.
Em exames de ultrassonografia
obstétrica, isto se torna de extrema relevância, pois além da gestação,
que constitui condição dinâmica em constantes transformações, existem
fatores que podem diretamente influenciar na interpretação, como posição
fetal e presença de imagens que podem dificultar a visualização dos
parâmetros principais. Nas demandas judiciais envolvendo exames de
ultrassonografia, a maioria dos exames questionados é de origem
obstétrica. No caso de análise de biometria fetal, se alguma deformação
ou alteração de estruturas forem ou não visualizadas, estas devem ser
detalhadamente descritas e, se possível, documentadas por fotografia.
Importante ressaltar que todo método de imagem tem limitações. O exame
morfológico fetal tem constituído para o aumento na demanda de ações na
justiça.
Atenção especial deve ser dada na correta correlação entre o
laudo e o paciente que realizou o exame. A "troca" de exames, uma vez
caracterizada, pode ensejar a condenação do profissional responsável à
indenização por danos morais e materiais, dependendo do dano a ser
apurado.
O laudo, expressando todas as ações realizadas durante o
exame, deve descrever a técnica empregada, os dados do paciente, a
região examinada e a descrição dos achados, tudo de forma objetiva e
abrangente(7).
Nos casos em que o imaginologista está convicto de
sua interpretação, o laudo pode ser concluído de forma mais direta e
objetiva.
Atenção especial deve ser dada na revisão do laudo,
momento no qual equívocos podem ser corrigidos. Laudos padronizados com o
intuito de agilizar o trabalho podem constituir causa de erro ao
informar, por exemplo, "vesícula biliar de aspectos normais" em paciente
colecistectomizado.
É importante asseverar que, sendo o exame de
imagem, na maioria de suas indicações, de caráter complementar, fica
implícito que complementar a investigação diagnóstica e sua correlação
com os dados clínicos do paciente é imprescindível(8).
Uma
relação que jamais pode ser quebrada é entre o imaginologista e o médico
assistente, seja na consulta de dados do paciente ou na discussão do
caso, sobretudo naqueles que requeiram condutas mais urgentes. A
indicação de cisto ovariano identificado em paciente assintomática, na
menacme, "com características funcionais", deixa entrever conduta
conservadora.
Não deve ser desprezada a opinião de outro colega da área da radiologia, nos casos mais complexos e de difícil interpretação.
Conforme
citado, os avanços tecnológicos permitem uma maior precisão
diagnóstica, entretanto, na radiologia intervencionista algumas
situações podem gerar ações judiciais. Por ser um procedimento invasivo,
a utilização de contrastes, agulhas, cateteres e outros dispositivos
aumenta o risco para o paciente, e este deverá ser devidamente informado
sobre a possibilidade de ocorrência de determinadas situações ou
complicações decorrentes.
O dever de informação é de relevância na
análise processual. Os magistrados costumam subsidiar sua interpretação
na aplicação do Código de Defesa do Consumidor, visto que hoje o dever
de informação ensejará que o paciente participe diretamente das decisões
médicas, podendo, inclusive, recusar submeter-se a procedimento, desde
que não haja situação emergencial(9,10).
O consentimento
informado poderá ajudar no cumprimento do dever de informação,
permitindo a decisão conjunta do paciente, desde que confeccionado
especificamente para cada procedimento, detalhadamente descrito, e
perfeitamente entendido e autorizado pelo paciente(11,12).
Como
se sabe, jamais irá evitar uma demanda judicial, mas irá comprovar a
informação levada ao paciente, quando solicitada a realização da prova
técnica.
Todos os serviços, clínicas ou hospitais que realizam
procedimentos invasivos ou intervencionistas devem ter, para pronto
emprego, instrumental completo e medicamentos para ressuscitação
cardiorrespiratória. Se for o caso, um convênio ou linha direta com
empresa de remoção em UTI móvel pode proporcionar segurança ao paciente,
numa eventualidade. Tais ações vão assegurar, na visão jurídica, os
cuidados e a responsabilidade que envolve a instituição em relação ao
paciente.
Atenção especial deve ser atribuída ao ensino médico e a
sua prática em hospitais ou maternidades universitários. Muito embora o
médico residente tenha autonomia pelos seus atos profissionais, estes
devem ser sempre supervisionados por um preceptor ou médico mais
experiente. Os laudos, a análise de imagens, os procedimentos invasivos,
as manobras e as decisões técnicas são de responsabilidade do
preceptor, orientador, chefe do serviço ou, ainda, do diretor técnico da
unidade.
Nos dias de hoje, dizer que existe uma receita para evitar um processo judicial é ledo engano.
O
que se observa, tomando por base os inúmeros processos judiciais
envolvendo os médicos e principalmente os imaginologistas, são atitudes
de caráter preventivo, que podem trazer ao processo provas irrefutáveis
da boa conduta, da perfeita integração nas interpretações de imagem e
conclusões apresentadas, assegurando a boa prática médica.
Medida
altamente salutar seria a abordagem de temas de Direito Médico nos
cursos de graduação em medicina que, de forma mais abrangente e
completa, orientaria os futuros profissionais médicos, quanto às
situações de ordem prática, ressaltando os aspectos jurídicos e éticos
que envolvem o exercício profissional.